sábado, 24 de maio de 2014

Para matar um grande amor...

Jamil Snege

Muito se louvou a arte do encontro, mas poucos louvaram a arte do adeus. No entanto, não há gesto tão profundamente humano quanto uma despedida. É aquele momento em que renunciamos não apenas à pessoa amada, mas a nós mesmos, ao mundo, ao universo inteiro. O amor relativiza; a renúncia absolutiza. E não há sentimento mais absoluto do que a solidão em que somos lançados após o derradeiro abraço, o último e desesperado entrelaçar de mãos.

Arrisco mesmo a dizer: só os amores verdadeiros se acabam. Os que sobrevivem, incrustados no hábito de se amar, podem durar uma vida inteira e podem até ser chamados de amor, mas nunca foram ou serão um amor verdadeiro. Falta-lhes exatamente o dom da finitude, abrupta e intempestiva. Qualidade só encontrável nos amores que infundem medo e temor de destruição.

Não se vive o amor, sofre-se o amor. Sofre-se a ansiedade de não poder retê-lo, porque nossas cordas afetivas são muito frágeis para mantê-lo retido e domesticado como um animal de estimação. Ele é xucro e bravio e nos despedaça a cada embate, e por fim se extingue e nos extingue com ele. Aponta numa única direção: o rompimento. Pois só conseguiremos suportá-lo se ocultarmos de nossos sentidos o objeto dessa desvairada paixão.

Mas não se pense que esse é um gesto de covardia. O grande amor exige isso. O rompimento é sua parte complementar. Uma maneira astuciosa de suspender a tragédia, ditada pelo instinto de sobrevivência de cada um dos amantes. Morrer um pouco para se continuar vivendo. E poder usufruir daquele momento mágico, embebido de ternura, em que a voz falseia, as mãos se abandonam e cada qual vê o outro se afastar como se através de uma cortina líquida ou de um vitral embaçado.

Há todo um imaginário sobre os adeuses e as separações, construído pela literatura e pelo cinema. O cenário pode ser uma estação de trem, um aeroporto ( remember Casablanca), um entroncamento rodoviário. Pode ser uma praça ou uma praia deserta. Falésias ou ruínas de uma cidade perdida. Pode estar garoando ou nevando, mas vento é imprescindível. As nuvens devem revolutear no horizonte, como a sugerir a volubilidade do destino. Os cabelos da amada, longos e escuros, fustigam de leve seus lábios entreabertos. Há sutis crispações, um discreto arfar de seios. E os olhos, ah!, os olhos... A visão é o último e o mais frágil dos sentidos que ainda nos une ao que acabamos de perder.

Uma grande dor, uma solidão cósmica, um imenso sentimento de desterro. Que se curam algum tempo depois com um amor vulgar, desses feitos para durar uma vida inteira...

quarta-feira, 21 de maio de 2014

HC: o maior banco de cérebros do mundo

Publicado em: Jornal da Tarde (JT Cidade ) em 1 de Maio de 2011

HC: o maior banco de cérebros do mundo

Por Felipe Oda
Doar órgãos, como rins, pâncreas e coração, pode salvar a vida de muita gente. E doadores de cérebros também têm, indiretamente, esse poder. São eles que abastecessem o maior banco de cérebros do mundo, coordenado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que reúne mais de 1,6 mil exemplares e ajuda a fomentar as pesquisas sobre doenças neurológicas no País.
Graças às amostras é que os pesquisadores conseguiram, por exemplo, identificar o acidente vascular cerebral (AVC), ou derrame, como principal causa de demência na cidade, quando antes se imaginava ser o mal de Alzheimer. A partir disso, foi possível desenvolver políticas públicas de prevenção contra os quadros associados à doença, como diabete e hipertensão (leia mais ao lado).
Pesquisadores internacionais também consultam o acervo da universidade, que funciona discretamente na Avenida Doutor Enéas de Carvalho Aguiar, no bairro Cerqueira César, região central. Ele é mantido no prédio do Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC), órgão vinculado à USP.
O acervo, que guarda órgãos de pessoas com 50 anos ou mais, sadias e doentes, também ajuda os pesquisadores a compreenderem o processo de envelhecimento. "Só recebemos órgãos do Serviço de Verificação. Todos os casos são de causas naturais, quando o indivíduo morreu por causa de alguma doença", explicao professor do Departamento de Patologia da FMUSP e diretor do SVOC, Carlos Augusto Pasqualucci.
Os órgãos armazenados não são apenas os de pessoas que tiveram doenças neurodegenerativas diagnosticadas, explica a professora do Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica daFMUSP, Renata Ferretti. E isso é o que diferencia o Banco de Encéfalos Humanos, do Grupo de Estudos em Envelhecimento Cerebral da Faculdade de Medicina da USP (BEHGEEC), de outros acervo no mundo. "Bancos estrangeiros têm poucos "casos controles" (indivíduos normais). Aqui temos 60% da a mostra saudável e 40% de encéfalos com alguma doença neurológica", afirma.
Pesquisadores do BEHGEEC, Pasqualucci e Renata explicam que os cérebros são doados pelos familiares. "No exterior há programas de doação. A pessoa e a família doam o órgão em vida e ele é retirado quando o indivíduo morre. Aqui, como nem todos são atendidos pelos serviços de saúde, a doação só ocorre após a morte."
O trabalho do banco já despertou o interesse de vários centros de pesquisa. "Há parcerias dentro da USP e com outras instituições nacionais e internacionais", afirma Pasqualucci. Cientistas alemães, norte-americanos e portugueses costumam colaborar com pesquisas desenvolvidas no BEHGEEC - mantido pela USP e por agências fomentadoras de pesquisas científicas, como Fapesp, CAPES, CNPq e a americana Alzheimer"s Association.
Fundação
O banco da FMUSP não é o único no País. As universidades federais de São Paulo e Pernambuco também mantêm acervos - mas são amostrais e não contam com atualização constante como o BEHGEEC. "Trabalhar com o Serviço de Verificação nos ajuda. Realizamos cerca de 13 mil autópsias por ano", conta Pasqualucci.
Em funcionamento há oito anos, o acervo começou a ser coletado para teses acadêmicas. "Não tínhamos a intenção de montar o banco, mas precisávamos de uma metodologia que atendesse à necessidade de pesquisa", conta Renata, que desenvolveu o acervo em parceria com a patologista Lea Grinberg, coordenadora do Projeto de Envelhecimento Cerebral da USP.
Família determina a doação
Doações mantêm o acervo de cérebros. Dos cerca de 400 cadáveres com 50 anos ou mais que dão entrada anualmente no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC), apenas 1% não tem o encéfalo doado ao banco da FMUSP. "Nosso índice de recusa é muito baixo, mas existe", garante a professora Renata Ferretti.
É ela quem coordena a equipe que "convence" a família do paciente a doar o órgão. "Abordamos a família e explicamos todo o procedimento, assim como os estudos que serão realizados caso a família autorize a doação", diz. Após a liberação familiar, uma ficha clínica do indivíduo é preenchida e análises anatomopatológicas são realizadas. "Fazemos análise do perímetro, peso, volume e cálculo da densidade do encéfalo, entre outros exames", lista Renata.
A identidade e as informações do doador e parentes são preservadas. Apesar de o País considerar idoso apenas pessoas com 60 anos ou mais, o Banco de Encéfalos Humanos do Grupo de Estudos em Envelhecimento Cerebral da USP também coleta órgãos pré-senis. "Coletamos a partir dos 50 anos. É uma faixa de segurança, porque existe uma enorme dificuldade para se definir um marcador biológicoparaoinício do envelhecimento", afirma Renata.
Para armazenar o cérebro, os pesquisadores realizam um processo conhecido como fixação. "Precisamos interromper o processo de putrefação. É possível fazer isso quimicamente, com o uso do formol, e pela temperatura (-80° C)", esclarece o professor Carlos Augusto Pasqualucci. Os órgãos ficam aproximadamente 21 dias embebidos na substância química até poderem passar pela fixação.
Os próximos passos, segundo os pesquisadores, são: preparo de lâminas para análises microscópicas, coleta de material e congelamento. "Metade do encéfalo é congelada e a outra metade é utilizada para análises diversas (divididas em lâminas e pequenos pedaços)", detalha Renata.
Todo o acervo e informações coletadas ficam disponíveis - desde que exista a autorização dos familiares do doador - para pesquisas acadêmicas da FMUSP.